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Estação 17 - "A Médica do Trem"

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Recebi o artigo abaixo do Férreo Amigo Wanderley Duck, destacando o trabalho médico da Doutora Lilia Mesquita nos áureos tempos da ferrovia de passageiros no Brasil. Época em que quase nem se falava em rodovias e que as soluções de transporte dependiam quase que exclusivamente do trem. Agora, você é meu convidado, confira o trabalho dela logo abaixo:








"A médica do trem.

Wanderley Duck (*)

A vida me deu o privilégio de conhecer pessoas muito especiais, criaturas que certamente foram colocadas neste planeta para fazer dele um lugar melhor, e a Doutora Lilia Mesquita foi uma dessas pessoas.

A minha mulher e eu tivemos a honra de tê-la como madrinha do nosso casamento, em uma cerimônia civil muito simples, tão simples como era aquela mulher.







(JUNHO DE 1988) A DOUTORA LILIA, A MINHA MULHER E EU, EM FRENTE AO JUIZ DE PAZ.










É claro que ela não ficou famosa, que não teve o seu trabalho divulgado pela tal da mídia que tanto fala de jogadores de futebol, de políticos, de homens e mulheres vulgares e de um monte de nulidades.

Ela faleceu no começo desta semana, com 92 anos de idade, mas plenamente lúcida e independente.

O povo, os políticos e os repórteres não acorreram ao seu velório, como sempre acontece quando morre alguma celebridade, e tampouco o trânsito da cidade ficou mais tumultuado por causa do seu cortejo fúnebre, avenidas não foram interditadas para ela.

Também nenhum daqueles padres populares, aqueles que gostam de posar ao lado dos artistas quando esses enfrentam algum momento difícil, deu as caras por lá.

Não que eu esperasse algo diferente, afinal se quando faleceu o Doutor Zerbini, que até que era conhecido da população, o que houve foi quase que apenas uma notinha de nada nos jornais, em contraste a praticamente dias e dias só noticiando a morte de um esportista famoso que morreu na mesma época, imagine no caso da Doutora Lilia.

Um mestre escola boliviano, um sujeito muito simples, comentou comigo recentemente que o brasileiro parece só se orgulhar dos seus jogadores de futebol e das tais "mulheres melancia", que não dá a menor importância aos seus médicos, aos seus engenheiros, seus cientistas, professores e às suas outras pessoas boas e produtivas. Concordo plenamente com ele, mas acredito que isso não é um privilégio só do Brasil não, muitos outros povos também se comportam assim.

Feito este meu desabafo, vamos voltar no tempo e imaginar um Rio Grande do Sul de muito antigamente, aonde o que as famílias esperavam das meninas é que elas se casassem e virassem mães e donas de casa, se quisesse trabalhar enquanto esperava para casar, podia ser professora e era só isso.

Mas a Doutora Lilia queria ser médica e aí a coisa complicou.

Gaúcha de faca na bota, gaudéria no pleno sentido da palavra, não iria desistir do seu sonho só por causa de uma imposição familiar e então resolveu a questão de maneira simples, mudou-se para a casa de uns parentes em Curitiba, que se propuseram a ajudar, e com a desculpa de que iria cursar o normal, o curso que formava professoras primárias naquele tempo, foi é fazer medicina.

Ela era a única mulher da turma e na sua formatura a surpresa da família foi grande, pois só naquele dia é que descobriram que a filha tinha se transformado em uma médica. Pelo que a Doutora contava, só na hora do Juramento de Hipócrates é que eles perceberam que aquilo era uma formatura de médicos e não de normalistas.

Mas já estava feito mesmo e então, depois da esperada bronca, a vida continuou.

Anos depois, já trabalhando em São Paulo como ginecologista especializada em colposcopia, em uma fundação do Estado voltada à prevenção e ao tratamento do câncer, ela teve a idéia de expandir o seu trabalho preventivo às mulheres do interior paulista.

Era um tempo em que o rodoviarismo ainda não havia tomado conta do Brasil e as ferrovias ainda eram o grande meio de transporte, na verdade praticamente o único meio de transporte naquela época de estradas precárias e automóveis rústicos, e a solução que ela encontrou foi a que lhe pareceu óbvia, um trem.

Tanto fez que conseguiu do Governo do Estado um trem inteirinho, com vagão consultório, vagão laboratório, vagão alojamento e, de quebra, com todo o equipamento que fosse necessário.

Dá para imaginar a luta e as peripécias que ela teve que fazer para ganhar esse trem, aliás, pensando bem, nem dá para imaginar, só sei que ela brigou e conseguiu.

Antigamente as ferrovias tinham algumas composições que davam apoio médico aos seus funcionários, faziam exames médicos periódicos, rastreamento de casos de tuberculose, prevenção contra a malária e coisas assim, e foi um desses antigos trens do chamado "serviço sanitário", que naquela época já não existia mais, que deram para ela.






O VAGÃO CONSULTÓRIO DO "TREM DA DOUTORA" NA ESTRADA DE FERRO SOROCABANA.




Ia alguém na frente, para pedir à emissora de rádio da próxima cidade que avisasse ao povo sobre o dia em que o trem estaria lá e, quando ele chegava na estação, já tinha uma imensa fila de gente esperando.
Não eram apenas as mulheres da cidade que vinham, também aparecia muita gente da zona rural, que chegavam em carroças e até a cavalo. Infelizmente não consegui a tempo uma foto que deve ter ficado na casa da Doutora Lilia, uma mulher grávida chegando a cavalo para fazer os seus exames.
Contava a enfermeira Cecina, que fazia parte da equipe, que se, além da rádio, eles conseguissem que o padre também avisasse na missa do domingo, o sucesso era garantido.
Eles ficavam uns dois ou três dias em cada cidade, alojados no próprio trem, e com isso eram feitos todos os exames de prevenção de câncer ginecológico naquelas mulheres, que de outra maneira dificilmente teriam acesso a eles, com direito inclusive a um citologista que ia junto e que tinha a bordo um bom microscópio, para ler as lâminas dos testes de Papanicolau que fossem consideradas suspeitas.




DOUTOR GEÓRGIOS PAPANICOLAU (1883-1962) O MÉDICO GREGO QUE DESENVOLVEU OMÉTODO DE DETECÇÃO PRECOCE DO CÂNCER GINECOLÓGICO, O TESTE DE PAPANICOLAU.







O trabalho dela começou na linha da Estrada de Ferro Sorocabana e deu tão certo que, no final, ela também acabou ganhando um trem na Companhia Paulista de Estradas de Ferro, cuja linha era de bitola larga e não poderia ser percorrida pelo trem da Sorocabana, que era de bitola estreita.
Como ela e a equipe não viajavam o ano inteiro, boa parte do ano ficavam realizando as suas atividades de rotina na fundação em que trabalhavam, nos períodos de ociosidade esses trens passaram a ser usados também como postos volantes de puericultura por um outro grupo de profissionais e também apresentaram um ótimo resultado.

Depois veio o progresso, as cidades do interior ganharam uma melhor estrutura médico-sanitária e esses trens se tornaram desnecessários e foram encostados.
A última notícia que tive daquele da Sorocabana foi que ele estava se acabando ao relento em Santos e que do trem da Paulista só sobrou um vagão, que estava abandonado em uma estação desativada perto de Campinas, é só o que eu sei deles.





O ÚNICO VAGÃO QUE RESTOU DO TREM QUE PERCORRIA A LINHA DE BITOLA LARGA.






O velório e a cerimônia de cremação do corpo da Doutora Lilia Mesquita foram discretos e modestos, não teve notícia no jornal e certamente o seu nome não irá batizar nenhuma rodovia ou avenida, acredito que nem mesmo alguma acanhada rua do Bairro da Aclimação, aonde ela sempre morou desde que se mudou de mala e cuia de chimarrão para São Paulo, terá o seu nome.
Ao contrário das nulidades famosas, entretanto, ela vai continuar viva para sempre, através dos filhos, dos netos e dos bisnetos das incontáveis mulheres cuja vida o trenzinho dela salvou."


Nota: O Wanderley me contou que a Dra. Lilia Mesquita nasceu em 1918 e faleceu em São Paulo no Bairro da Aclimação, em maio de 2010 aos 92 anos. Me contou também que a ABPF de Campinas resgatou um dos carros do "trem da Doutora Lilia", justamente o da última foto que ilustra o artigo acima, mas Infelizmente o tempo de abandono daquele carro lá em Vinhedo e mais algumas outras dificuldades, impedem o seu restauro no original, então ele vai ser rebitolado e remodelado como um primeira classe, mas tudo bem, ao menos está salvo...

Créditos:
Artigo e fotos: Wanderley Duch

Colaboraram: Daniel e Maria Nazareth Gobato Röhm

Obrigado por sua agradável companhia, nos encontraremos certamente na Estação 18.
Abraços, Alfeo




3 comentários :

Alberto Lang disse...

Muito legal. Eu, como muitos desconhecia essa história.

Romeu disse...

Mulher, médica e mãe maravilhosa!! tive o prazer de conhecer e conviver por muitos e, para meu privilégio, muitos anos!! Aprendi muito com esta convivência, respeito e carinho que ela mostrava a todo tempo!! Enérgica , firme e além do mais "correta" mas sempre alegre e carinhosa!! Guardo pra sempre estes anos na memória e levo sua imagem e seus ensinamentos comigo!!! SAUDADE!!!!!!

Anônimo disse...

Nishimura, Paulo: tive grata satisfação de convivência e ser tratado como como sobrinho

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